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surfe meio ambiente
Foto: Arquivo Pessoal | Victor Freitas da Silva @srfvictor

Pode parecer que os temporais que devastaram o litoral norte de São Paulo há um ano não têm muito a ver com o surfe. O volume de água que caiu em São Sebastião durante poucas horas no Carnaval de 2023 foi recorde, o que é realmente muito distante da quantidade de água da rasgada que o seu brother diz que deu, mas que só ele viu. Acontece que, como já sabemos, estamos enfrentando mudanças climáticas e a tendência é de grandes transformações nas dinâmicas meteorológicas nos próximos anos.

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Observaremos eventos extremos com maior frequência e intensidade, o que alterará profundamente as paisagens costeiras. Mais ondas e ondas mais fortes? É possível que essas sejam algumas das consequências. Diante desse cenário, eu lhe pergunto: como é que vai ficar o surfe? Os bons surfistas de hoje serão os bons surfistas de amanhã? Ainda mais importante: o “prego” de hoje será como o “prego” de amanhã?

Barra do Sahy
Barra do Sahy. Foto: Divulgação | Circuito Litoral Norte

Para falar a verdade, pode ser que nós estejamos sendo pregos hoje por não refletirmos a respeito do nosso surf para além das manobras ou da quantidade de ondas que vamos surfar. O que vou “dropar” nas próximas linhas é uma reflexão sobre o esporte em si, sem querer saber quem surfa melhor, até porque, se olharmos do ponto de vista dos cuidados com o planeta, estamos todos surfando mal.

Quando vamos contar a alguém sobre os prazeres que sentimos ao surfar, sem dúvida alguma mencionamos o contato com a natureza. Em São Paulo, onde há a maior quantidade de surfistas em uma cidade sem praia no mundo de acordo com a revista Veja, tenho certeza que poder sentir o calor do sol e o frescor da água longe do estresse dos escritórios e engarrafamentos é algo que te motiva a seguir investindo no bate-volta, na surf trip, bem como em esticadas de alguns dias à beira do mar. Enfim, elementos do lifestyle do surfe como conhecemos hoje. A cada descida, aquele mesmo pensamento: será que vai chegar um dia em que vou jogar tudo pro alto e ir morar na praia?

Entretanto, por mais que a gente goste muito desse contato com a natureza, é triste perceber em quantos sentidos os nossos hábitos dentro do esporte se colocam contra ela. A mudança climática não é uma mentira, o aumento do nível dos oceanos também não. A Indonésia alterou sua capital de Jakarta para Nusantara baseando-se nesses fatos, que também orientam as Maldivas em busca de soluções, uma vez que podem restar apenas 20% de suas terras habitáveis até 2050. Na esteira das mudanças propostas pelos governos, é válido darmos uma olhada no nosso próprio espelho e refletirmos também a respeito das nossas imperfeições enquanto indivíduos.

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desastre climático
Foto: Kelly Sikkema | Unsplash

Poluição atmosférica

Bate-volta

“Entra no carro, as bóias já estão no rack”, como canta o Irmão Aldo. O bate-volta é um dos rolês mais queridos dos(as) surfistas de São Paulo. Dá aquela quebrada boa na rotina, rende boas ondas e resenhas. Mas nem tudo são flores. Segundo estimativa da revista Almasurf e em matéria publicada pela Veja SP, a cidade de São Paulo abriga 150 mil surfistas praticantes. Quando paramos para pensar no impacto gerado pelo bate-volta, em termos de poluição atmosférica, nos deparamos com os seguintes números:

  • Escolhendo um ponto central como a Praça da Sé, em São Paulo, como ponto de partida para uma queda na Praia de Pitangueiras, no Guarujá, o percurso de ida e volta dá exatos 200 quilômetros, pela Imigrantes.
  • Considerando que os veículos façam 10km/l, temos um consumo de 20 litros para ir e Esse trajeto gera 81 quilos de CO2 de acordo com o site My Climate, reconhecido pela ONU como vencedor do prêmio Momentum For Change, promovido pela secretaria de mudanças climáticas da mesma instituição.
  • Essa quantia, sozinha, supera em dez por cento a quantidade máxima de CO2 que podemos gerar anualmente para combater o aquecimento global, que é de 600 kg. Individualmente, se descermos uma só vez por mês, estaremos gerando, por ano, 972 quilos de CO2, quase 400 kg a mais que a massa aceitável para termos um futuro otimista em relação ao planeta. Em outras palavras, se descermos uma só vez por mês, nossas emissões de dióxido de carbono serão equivalentes à massa de um Fiat Palio Fire 1.0 8V, a cada ano.
  • Se calcularmos que em um mês ao menos metade dos surfistas paulistanos fazem, no mínimo, uma descida à praia, então tratamos de liberar 6000 toneladas de CO2 para a atmosfera. Em um ano, 72.000 toneladas. Isso equivale, aproximadamente, à massa de mil caminhões Mercedes Benz – Atego 3030.
Serra do mar
Serra do Mar, São Paulo. Foto: JNAlencar | Wikkimedia Commons (CC4.0)

 Surf Trip

Todos sonhamos com aquela surf trip. Viajar com os amigos é sempre bom. Se for para pegar ondas iradas em praias paradisíacas do outro lado do mundo, ainda melhor. Mas raramente paramos para pensar sobre o “lado B” dessa prática:

  • Em uma surf trip de ida e volta de São Paulo para Bali, fazendo conexão em Doha, no Qatar, o deslocamento total é de 39.500 km.
  • Um avião frequentemente usado nesse trajeto é o Boeing 777-200, com capacidade para 300 passageiros.
  • Esse vôo libera 6,5 toneladas de CO2. Individualmente, somos responsáveis por 22 kg de CO2 liberados para a atmosfera, apenas com o voo.
  • Segundo apuração feita com brasileiros que são donos de barcos na Indonésia, a quantidade de 60 litros de diesel é consumida por hora, sendo que é comum navegar 100 horas em uma trip. Isso equivale ao total de 6000 litros de diesel consumidos apenas para o barco.
  • É comum que os barcos suportem em média 15 passageiros, o que corresponde a 400 litros de diesel por passageiro.
  • Já que são produzidos 2,7 litros de CO2 por litro de diesel queimado, cada passageiro é responsável por liberar, apenas no barco, 1080 litros de CO2. Convertendo, cada passageiro libera 734 quilos de CO2.
  • Portanto, em uma surf trip para Bali, que dura no máximo 15 dias, liberamos, individualmente, 756 quilos de CO2, o que significa 156 quilos de dióxido de carbono a mais do que deveríamos liberar em 365 dias, caso quiséssemos impedir o aquecimento global, algo que impacta diretamente a natureza e o surfe. Em outras palavras, durante uma surf trip de 15 dias somos responsáveis por gerar, individualmente, a massa de uma vaca em emissões de dióxido de carbono.
metano
Foto: Pixabay

Poluição Marinha

Parafina

A cada queda, aquela retocada. Aliás, você tem um “teco” aí para me emprestar? Malandragens à parte, já parou para pensar de que ela é feita? Em 1935, um brother chamado Alfred Gallant Jr se tornou pioneiro ao solucionar o problema dos escorregões ao pegar escondido de sua mãe uma lata de cera de chão e aplicar uma camada sobre sua prancha. A partir daí, o resto é história. Hoje é comum consumirmos cerca de uma unidade de 80g a cada quatro quedas, isso é, quando não aparece aquele brother para urubuzar um pedaço “emprestado”.

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O problema é que a parafina é um dos rejeitos do processo de refino do petróleo. Já que ao longo da sessão o material vai se espalhando na água por conta do atrito com nosso corpo, com o john, e por causa do contato com a água, temos que saber que estamos poluindo o oceano. Além disso, ela possui compostos químicos cancerígenos como o benzeno e o tolueno, que fazem mal para nós e para a vida marinha. Se num ano você consumiu ao menos doze parafinas, quer dizer que você é responsável por ter levado ao oceano aproximadamente um quilo de um derivado de petróleo que é tóxico.

Se considerarmos todos os surfistas da cidade de São Paulo consumindo doze parafinas por ano, estaremos falando de 144 toneladas de um composto químico tóxico sendo destinado ao oceano a cada ano, o que equivale à massa de uma baleia azul, o maior animal da Terra.

baleia azul
Baleia azul. Foto: Oregon State University | Flickr

Boardshorts

Provavelmente você já botou a culpa de ter tomado uma vaca na bermuda porque ela “travou o movimento das pernas”. Aham, beleza! Até a década de 1970, ou seja, muitos e muitos anos após o aparecimento do surfe, as bermudas eram feitas de algodão. Tudo muda quando a marca Hang Ten aparece com calções de nylon. Feitas de plástico, elas duravam mais que as de algodão, com o adicional de secarem mais rápido.

Nessa época, ninguém conhecia o termo “microplásticos”. Agora, sabemos que eles são os fragmentos de plástico inferiores a 5mm encontrados não só na água como também no ar, no sal marinho e também nos peixes, entre outras possibilidades. Por ano, cerca de 8 milhões de toneladas de microplásticos chegam aos oceanos. Até hoje usamos bermudas feitas de plástico, um produto que se expandiu para além do surfe e conquistou um espaço na moda em geral. Seja na cidade, no campo ou no litoral, as bermudas de surfe são usadas por todas e todos. Então precisamos reconhecer um legado de importância do surfe para a moda, o que é legal!

surfista onda bermuda
Foto: Arquivo Pessoal | Victor Freitas da Silva @srfvictor

Por outro lado, mesmo com todo o nosso saber e tecnologia, não parecemos nos preocupar com a natureza ao usar esse tipo de equipamento, que gera poluentes para o oceano na forma dos microplásticos. No caso, eles são gerados durante o surfe e também a lavagem da roupa, momentos nos quais o atrito com outras superfícies acontece.

É preciso reconhecer: nossas bermudas de fibras sintéticas liberam microplásticos no meio ambiente e, quando descartadas, vão demorar em média 30 anos para se decompor na natureza.

WetSuit

surf meio ambiente
Foto: Arquivo Pessoal | Victor Freitas da Silva @srfvictor

Hmmmm, que quentinho! Pois é, quem nunca? O neoprene foi criado em 1930, enquanto o mundo ocidental procurava um substituto sintético para a borracha. Mas é só na década de 1950 que seu uso passa a ser associado ao oceano. Isso aconteceu através de Hugh Bradner, que foi o primeiro cara a usar o material para confeccionar uma roupa de mergulho. De lá para cá, os trajes de neoprene se popularizaram com a figura de Jack O’neill e até hoje usamos os “johns” feitos de borracha sintética. Mas e então, do que é feita a borracha sintética? Derivados de petróleo. Essa informação já bastaria para indicar que não é algo saudável para o oceano, dado que a indústria petrolífera é uma grande poluente desse ecossistema, além do fato dos wetsuits serem fontes de microplásticos e terem tempo de decomposição indeterminado na natureza.

Quando aquele seu neoprene antigo rasgou, ficou pequeno ou estourou o zíper, você deu um destino adequado? Dificilmente a resposta será “sim”. O que acontece é que apenas descartamos e, quando muito, torcemos para que ele seja utilizado para alguma coisa ao invés de ser aterrados.

Pranchas

prancha transparente feita de algas
Prancha transparente feita de algas. Foto: Jérémy Lucas | Paradoxal Surfboards

A década de 1940 é um marco tecnológico em muitos sentidos. A segunda guerra mundial foi tida como pano de fundo para diversas transformações e inventos no que diz respeito aos materiais. Isso também impacta o mundo do surfe, pois é nesse contexto que surge a primeira prancha feita de um recheio de poliuretano coberto com fibra de vidro, a chamada “sandwich board”, desenvolvida na Califórnia por Quigg e Bob Simmons, em 1947. Até essa década, as pranchas eram feitas essencialmente de madeira. Desde então o mercado se desenvolveu mundo afora, sem contudo perder essa referência revolucionária.

Para cada atividade humana, uma pegada de carbono. Isto é, a quantidade de carbono equivalente liberada na atmosfera para executarmos uma atividade, um deslocamento, uma produção. No caso das pranchas não é diferente. De acordo com Rick Lomax, especialista em sustentabilidade e surfe, a produção de uma prancha de tamanho 6’1” (6 pés e uma polegada) tem uma pegada de carbono de 181 kg, o equivalente à massa de uma tartaruga-verde como a da foto a seguir:

tartarugas-verdes
Tartaruga verde. Foto: Caio Salles

Se no país produzimos cerca de 50 mil pranchas anualmente, de acordo com Grijó e Brügger, pesquisadores sobre a indústria do surfe, a pegada de carbono dessa produção é de nove milhões de toneladas de carbono. Em paralelo com essa emissão existe todo um problema relacionado ao descarte e reciclagem desse material, que no caso brasileiro deixa muito a desejar. Vivemos num país que ocupa a quarta posição de maior produtor de lixo plástico no mundo, ao mesmo tempo que reciclamos apenas 1,3% deste tipo de resíduo, segundo a WWF.

Pô, brother, tenho que parar de surfar, então?

Não, você não precisa parar de surfar. Mas existem algumas coisas legais que você pode fazer. Para cada um dos problemas mencionados, uma possibilidade de ajuste:

  1. No bate-volta, procure ir sempre com amigos e/ou amigas, lembrando que você também pode oferecer carona. Assim, você diminui sua parcela individual de emissão de carbono, além de dividir o combustível e os pedágios. O bolso e o planeta agradecem.
  2. Nas surf trips, reflita sobre a necessidade de ir a algum lugar tão distante e sobre o uso de meios de transporte como barcos gigantescos ou grandes utilitários. Às vezes, você consegue surfar muito bem em um pico irado no seu próprio país ou em um país próximo ao seu, saindo do hotel e chegando à praia de bicicleta ou scooter, coisas que não vão deixar a desejar quando o assunto é lifestyle.
  3. Se o seu medo é tomar vaca por escorregar na prancha, fique tranquilo(a). As opções de parafinas feitas com ingredientes naturais ou até mesmo decks fixos não param de crescer. Você pode até pensar que não são tão pegajosas quanto as derivadas do petróleo, mas aí eu te pergunto: você precisa, mesmo, de tanto grip? Vai sair mandando rasgada e aéreo até não poder mais e por isso precisa de muita cola nos pés? A diferença não é tão grande e tem surfista ganhando competições com opções ecológicas. Se ligue!
  4. Quando a questão é estilo, vale a pena destacar que algumas marcas de surfwear estão apostando no algodão e em outras fibras naturais para mudar as bermudas para melhor. Assim o surfe fica leve dentro e fora da água. Tem até marcas grandes investindo em novos trajes de neoprene sendo produzidos com borracha natural, o que seria impensável alguns anos atrás.
  5. Pranchas  ocas  de madeira também estão bombando. Possuem uma aparência maravilhosa e uma performance que não deixa nada a desejar quando comparamos com as convencionais. Tudo isso aliado ao fato de serem feitas de árvores que captaram carbono da atmosfera ao longo da fotossíntese. Tudo de bom. De maneira geral, sobre os equipamentos, é sempre bom investir nos produtos usados. Podemos encontrar bons equipamentos de segunda mão com facilidade. Quem procura, acha! Desse jeito, a vida útil dos produtos aumenta e o consumo de matéria prima tende a diminuir, sem mencionar os preços mais amigáveis, o que é bom para todo mundo.
  6. Estude bem as previsões, confira os reports e câmeras, comunique-se com amigos e conhecidos ao invés de ficar indo de carro fazer o check. Assim você estará liberando menos gases de efeito estufa para a atmosfera e aproveitando as tecnologias que a humanidade produziu para ter mais calma antes de ir surfar. Pode até ficar um pouco mais na cama, se quiser. Ainda sobre o deslocamento, procure ir a pé, de bicicleta ou de moto à praia. A queima de combustíveis fósseis é a atividade humana que mais polui a atmosfera.

Por último, experimente morar no litoral. Se você surfa, gosta de praia e de natureza, será uma grande oportunidade de aprendizado e ação em muitos sentidos. Toda atitude conta.

surf onda natureza
Foto: Arquivo Pessoal | Victor Freitas da Silva @srfvictor

Este artigo foi escrito por Victor Freitas da Silva, pesquisador em geografia física na Universidade de São Paulo que atuou como professor de geografia na prefeitura de São Sebastião nos anos de 2021 e 2022, foi um dos fundadores da página Camburi Surf Report e da parafina ecológica Camburi Surf Wax. Também se considera prego.