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Arte quer trazer vozes indígenas para a história de São Paulo

Movimento liderado por Mundano inclui a violência contra os povos originários e sua luta na “versão oficial”

indígena são paulo
O jovem líder e professor indígena, Mateus Wera, participou de visitas aos marcos históricos do centro de São Paulo. Foto: Natasha Olsen

No centro de São Paulo, rios ocupavam o que hoje é concreto e asfalto. Muita gente que caminha sobre pela região do Anhangabaú não deve saber que a paisagem natural do lugar está muito longe do cenário urbano, que mistura arquiteturas distintas e uma dura realidade social.

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E, assim como as águas dos rios foram escondidas, a história que conhecemos da fundação da cidade, a partir do marco zero na Praça da Sé, também esconde fatos e narrativas que precisam ser lembrados, especialmente no dia em que a cidade de São Paulo completa 469 anos. Em meio à tragédia humanitária enfrentada pelos Yanomamis, o artivista Mundano, liderou uma série de ações para chamar a atenção para a situação dos povos indígenas no Brasil – usando como ponto de partida a história de São Paulo.

São Paulo
São Paulo vista do alto da Catedral da Sé. Foto: Natasha Olsen

“São Paulo ficou deste tamanho, mas foi às custas de muitas vítimas. É uma história triste, mas tem que ser contada. Porque a gente não vai mudar o presente e construir o nosso futuro, sem a gente olhar para o passado”, acredita Mundano.

Em visitas guiadas pelo centro da cidade, passando pelo Pateo do Collegio, Marco Zero e Catedral da Sé, grupos de artistas, jornalistas e influenciadores puderam conhecer outras histórias que fazem parte do nascimento da capital paulista.

placa fundação São Paulo
Versão sobre a fundação de São Paulo, no Pateo do Collegio. Foto: Natasha Olsen

Durante as visitas, lideranças indígenas e historiadores trouxeram narrativas sobre a invasão das terras indígenas e de violência contra os povos originários, que contrastam com a visão romantizada de uma São Paulo fundada pela convivência pacífica entre jesuítas e indígenas. “É super importante que, quando a gente pense na história, pensar quem são os personagens que estão sendo comtemplados. Afinal de contas, quem tem direito à história, quem tem direito à memória?” reforça a historiadora e criadora do Mulheres Viajantes, Thaís Carneiro.

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Thais explica que a história de São Paulo é basicamente a história de conflitos, uma história de guerra, em que prevaleceu a história dos vencedores. “A gente precisa pensar que a nossa sociedade não é feita tão somente de homens brancos que têm direito à escrita. A história está vinculada à nossa ancestralidade, então a gente precisa cada vez mais falar de uma história mais plural, mais inclusiva, para respeitar esta ancestralidade e pensar o que isso nos acarreta cotidianamente”, conclui.

São Paulo Pateo do Collegio
As visitas guiadas partiam do Pateo do Collegio. Foto: André D’Elia

A historiadora destacou a importância das muralhas que protegiam a vila de São Paulo dos Campos de Piratininga, hoje cidade de São Paulo, retratadas na maquete do Pateo do Collegio. Essa construção indica justamente os conflitos e violência que fizeram parte da fundação da maior cidade do país. Foi neste local que ocorreu o Cerco de Piratininga, ou Guerra de Piratininga, um ataque de diferentes etnias indígenas que se uniram e lutaram contra a invasão e escravidão promovidas pelos colonizadores. No conflito, mais de 500 indígenas foram massacrados – uma história pouco compartilhada.

mateus wera liderança indígena
Mateus Wera participou das visitas guiadas e pode compartilhar sua narrativa. Foto: Natasha Olsen

Mateus Wera, educador e jovem liderança indígena da aldeia Itakupe, vive na região do Pico do Jaraguá e participou das visitas guiadas. “Participar de um encontro de troca de saberes deste tipo é algo muito grandioso porque a gente tem a oportunidade de trazer a verdade através das histórias mal contadas, através das histórias escondidas, através das histórias que de alguma forma fecham este ciclo de pessoas que já viveram”, conta. Para ele, estar no centro de São Paulo não é fácil: Mateus diz que quando visita estes pontos históricos reflete e sente na pele o sofrimento de seus antepassados.

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“A gente sente triste realmente. A gente procura rezar muito antes de chegar nesses lugares, porque é algo que machuca ainda de pensar que é um lugar que as pessoas veneram, mas sem saber a história da sua própria história, né?”, diz o jovem líder indígena.

Ari Uru-EU-Wau-Wau

indígena ari urueu-wau-wau
Imagem de Ari, na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, que tem um longo histórico de invasão, grilagem, desmatamento e ameaças. Foto: Gabriel Uchida | Kanindé

Mundano, artivista que ajudou a organizar as visitas guiadas ao centro de São Paulo e mobilizar diferente grupos para que novas narrativas ganhem espaço, já havia começado a garantir a presença dos povos originários em pontos históricos da cidade. Em novembro de 2022, ele homenageou centenas de indígenas e ativistas assassinados no Brasil, com um retrato de 618m² de Ari Uru-Eu-Wau-Wau, que defendia seu território e cultura e foi morto em abril de 2020.

“Ali onde seria o céu, tem nomes de centenas de indígenas e ativistas que também foram assassinados nos últimos anos. O Brasil se configurou como o país mais letal para defensores do meio ambiente e é muito vergonhoso isso. Esse mural é um grito de ‘Basta!’”, defende o artivista.

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O prédio onde foi pintada a obra fica localizado na Rua Quintino Bocaiúva e a imagem pode ser vista da praça Dr. João Mendes, no centro de São Paulo. Foto: Divulgação | Mundano

A obra está na lateral de um prédio na Rua Quintino Bocaíuva, a poucos metros da Catedral da Sé. O grande mural foi pintado com terra retirada do Marco Zero de São Paulo e cinzas retiradas de áreas queimadas na Amazônia. Um dos objetivos da mobilização que antecedeu o aniversário de São Paulo, é incluir definitivamente a obra e a narrativa dos povos originários no roteiro turístico da capital paulista.

“Dessa provocação de mudar esteticamente o entrono do marco zero surgiu a provocação de estimular as pessoas a conhecerem mais a história. Nada melhor do que no dia em que São Paulo completa 469 anos a gente fazer uma grande reflexão de um momento tão importante que a gente passa tanto em São Paulo quanto no país. Acho que a arte tem este poder”, conta Mundano.

Quer saber mais sobre a luta de Ari e do povo Uru-Eu-Wau-Wau? Assista ao filme “O Território”, produzido pela ativista e indígena Txai Suruí. O documentário levou dois prêmios no Festival Sundance e agora concorre a uma vaga no Oscar.

O Território Filme
Poster do filme “O Território” de Alex Pritz

Artivismo por toda a cidade

Na semana em que se comemora o aniversário de São Paulo, a imagem de Ari Uru-Eu-Wau-Wau vai ser espalhada pela cidade pelos artistas que participaram das visitas guiadas ao centro. Vinte e cinco lambes com a reprodução da obra de Mundano serão colados em diversos bairros, como Sacomã, Barra Funda e Cidade Tiradentes.

A iniciativa faz parte da mobilização para dar visibilidade à violência contra os povos originários, apagada da história oficial, tanto da capital paulista, como do Brasil. Os lambes também incluem uma mensagem alusiva à preservação da Amazônia, lembrando que somos a última geração que pode manter a floresta em pé.

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Mundano mostra lambe com a reprodução da imagem de Ari Uru-Eu-Wau-Wau para artistas após visita ao centro de São Paulo. Foto: Natasha Olsen

A preservação da floresta, por sua vez, depende muito dos indígenas: dados do MapBiomas mostram que as terras indígenas perderam apenas 1% de sua área de vegetação nativa nos últimos 30 anos, enquanto nas áreas privadas a perda foi de 20,6%.

Para quem quiser se engajar na luta pela defesa dos povos indígenas e da floresta, basta usar a câmera do celular para ler o QR-Code reproduzido nos lambes e que leva à campanha Amazônia de Pé: um abaixo assinado que visa criar uma lei de iniciativa popular destinando os 57 milhões de hectares de florestas públicas na Amazônia para proteção dos povos indígenas, quilombolas, pequenos produtores extrativistas e Unidades de Conservação, além de prever uma maior criminalização para o roubo de terras, a grilagem.

“O apagamento dos indígenas de nossa história é parte do processo de genocídio iniciado há mais de 500 anos e que persiste até hoje, como nos lembra a imagem de Ari Uru-Eu-Wau-Wau. Interromper esse genocídio é urgente. Trata-se de uma questão de justiça humanitária e climática. São as florestas e seus guardiões que garantem a estabilidade do clima no Brasil, o que inclui a própria sobrevivência da cidade de São Paulo”, alerta o artivista.

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lideranças indígenas nas negociações do capítulo dos indígenas na Constituinte, Brasília, em 1988. Foto: Beto Ricardo | Acervo Instituto Socioambiental