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Defesas civis municipais sofrem com falta de verba, pessoal e estrutura

A defesa civil é um dos órgãos responsáveis pelo mapeamento de áreas de risco, prevenção e contenção de desastres ambientais

São Sebastião Litoral Norte enchente
Sahy, no litoral Norte, um dos locais mais afetados pelos temporais em fevereiro de 2023. Foto: Rovena Rosa | Agência Brasil

Um dos órgãos responsáveis pelo mapeamento de áreas de risco, prevenção e contenção de desastres ambientais, as defesas civis municipais enfrentam falta de verba, de pessoal e de estrutura. Em casos de temporais e chuva extrema, como a que atingiu o litoral norte de São Paulo no carnaval, cabe à defesa civil alertar e assessorar a população.

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O déficit de recursos é o principal entrave para a realização do trabalho de 67% desses órgãos (26% correspondem à falta de dinheiro; 22% de equipe e 19% de equipamentos). Com base em questionário aplicado em 1.993 cidades que participaram da Pesquisa Municipal em Proteção e Defesa Civil, 72% responderam não ter orçamento próprio para a área, não contando com dinheiro de outras secretarias ou, às vezes, nem sequer da própria prefeitura.

Esses dados estão no artigo Fundos Públicos Federais e Implementação da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil no Brasil, publicado na Revista de Informação Legislativa do Senado e assinado pelos advogados Fernanda Damacena e Luiz Felipe da Fonseca Pereira e pelos pesquisadores Renato Eliseu Costa, doutorando em Políticas Públicas pela Universidade Federal do ABC (UFABC), e Victor Marchezini, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).

Além disso, agentes de defesas civis municipais apontam a alta rotatividade nos cargos como o principal fator de retrocesso na redução do risco de desastres, aliada às precárias condições de trabalho, falta de treinamento e responsabilidades pouco claras na gestão de risco.

Estrada enchente litoral norte sp
Estrada no Litoral Norte de São Paulo. Imagem: Reprodução | Twitter @_dersp

A qualificação – 63% dos funcionários têm, pelo menos, curso superior completo – não garante a permanência no cargo – 43% estão há apenas um ano na função atual e 37% entre um e cinco anos, segundo a pesquisa Challenges for professionalism in civil defense and protection, divulgada na revista Disaster Prevention and Management. Alguns órgãos relataram que chegam a ter apenas um ou dois funcionários disponíveis para o trabalho e, quanto ao espaço físico, 65% das defesas civis dividem com outra secretaria.

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No estudo, os pesquisadores apontam que a falta de definição dos papéis dos atores envolvidos na gestão de riscos compromete a governança, reforçando a importância de profissionalizar a área. Em resposta a esse ponto, no ano passado, o Ministério do Trabalho incluiu o agente de proteção e defesa civil na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), sendo o primeiro passo para o reconhecimento e habilitação da profissão.

“As defesas civis não estão preparadas. Em um momento de emergência extrema, como o que ocorreu no litoral norte de São Paulo, os municípios como um todo também não estão. Sabemos que menos de 10% deles têm planos municipais de redução de riscos de desastres. Uma defesa civil sozinha não faz milagre. É necessário ter articulação entre as secretarias, conectando, por exemplo, planejamento urbano, escolas, sistema de saúde e fortalecendo a participação intersetorial e social. Há ainda o papel de Estados e do governo federal, que têm responsabilidade de dar suporte financeiro, de capacitação e com pessoal técnico”, avalia Marchezini, que atualmente faz pós-doutorado com apoio da FAPESP no Natural Hazards Center, da Universidade do Colorado-Boulder (Estados Unidos).

Atuando desde 2004 na área de sociologia dos desastres, com olhar para o envolvimento de comunidades locais na prevenção, Marchezini participou de vários levantamentos ligados à área, entre eles a coordenação do Projeto Elos.

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aplicativo enchentes
Foto: Reprodução YouTube | Memórias à Prova D’Água

Realizada entre outubro de 2020 e dezembro de 2021 por meio de cooperação técnica internacional entre a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sedec) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a pesquisa conduzida no Cemaden fez um levantamento de informações sobre a estrutura e capacidades das defesas civis municipais. Resultou em seis publicações do Diagnóstico Municipal em Proteção e Defesa Civil, que trazem não só um perfil desses órgãos por regiões do Brasil como sugestões de aperfeiçoamento da implementação da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC) nos municípios.

“Há uma necessidade cada vez maior de o tema da gestão de riscos não ser apenas da defesa civil. Mas sim de todas as secretarias municipais que precisam ter responsabilidade e comprometimento para ações estruturais e permanentes, principalmente quando o território onde elas estão tem ou pode vir a ter riscos de desastres em função da expansão urbana e maus projetos de crescimento econômico. É necessário também preparo de funcionários e da sociedade civil por meio de políticas educacionais e de comunicação clara que ajudem a lidar com situações de emergência”, completa o pesquisador.

Marchezini teve aprovado recentemente o projeto Capacidades Organizacionais de Preparação para Eventos Extremos (COPE), junto ao edital Auxílio Projeto Inicial, da FAPESP.

Recorde

O temporal que atingiu o litoral norte entre os dias 18 e 19 de fevereiro, deixando dezenas de mortos (65 óbitos até o dia 26) e quase 2 mil desabrigados, foi o maior volume de chuva acumulada de que se tem registro no Brasil, segundo o Cemaden. Foram 683 milímetros em Bertioga em menos de 24 horas, superando a tragédia de Petrópolis (RJ), em 2022, quando foram 534,4 milímetros no período.

Com 626 milímetros de chuva, São Sebastião foi o município mais impactado, com deslizamentos de encostas, alagamentos e bairros isolados por interdição de vias de acesso. Em Ilhabela choveu 337 mm no período, em Ubatuba 335 mm e em Caraguatatuba 234 mm, tendo sido essa última o local de maior tragédia no Estado de São Paulo. Em março de 1967, a cidade teve desmoronamento de encostas provocado pelas chuvas, com centenas de casas soterradas, e pelo menos 487 mortos (na contagem da época).

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Além de mapeamento de áreas de risco e prevenção, órgãos atuam na recuperação de áreas afetadas por desastres ambientais, como as chuvas que atingiram o litoral de São Paulo no carnaval. Foto: Prefeitura de São Sebastião

A intensidade das chuvas durante o último carnaval foi resultado de uma combinação de umidade, ventos de ciclone e uma frente fria estacionada em São Sebastião. O efeito foi agravado pela temperatura do oceano (entre 27 °C e 28 °C), que estava 1°C acima da média, o que aumenta a evaporação e a formação de nuvens. Nos últimos anos, o Brasil vem registrando um crescimento de eventos extremos. Segundo especialistas, com o aumento de temperatura de, no mínimo, 1,1°C nas últimas décadas devido às emissões de carbono, a tendência é que esses eventos sejam registrados com mais frequência, podendo causar danos maiores caso não sejam adotadas medidas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas.

Dados do Sistema Integrado de Informações sobre Desastres revelam que o país contabilizou 28.033 registros de decretação de situação de emergência (SE) e estado de calamidade pública (ECP) entre 2013 e o início deste ano. A maior parte corresponde a estiagens, secas e tempestades.

“De algum modo é preciso associar um projeto de proteção ambiental a um planejamento do uso do solo, com soluções habitacionais e oferta de moradias em locais sem risco, além de ações de mitigação, educacionais e estruturais, incluindo drenagem urbana, saneamento básico e contenção de encostas”, avalia Marchezini.

Atribuições

Às defesas civis municipais cabe a gestão de riscos e de desastres, atribuições que vão desde a análise e monitoramento de áreas de risco, com ações de prevenção e mitigação, até o socorro e atuação em projetos de recuperação. O Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sinpdec) congrega todas as competências para a gestão dos riscos e desastres e deve ter ênfase na prevenção. Sua coordenação está a cargo da Sedec.

No caso de chuvas, o Cemaden emite um comunicado/diagnóstico para a defesa civil nacional, que o encaminha à estadual e ou municipal. A defesa civil, por sua vez, envia mensagens à população local avisando da previsão de chuvas, alagamentos e deslizamentos. Em algumas cidades, há sirenes instaladas para o alerta.

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Conscientização sobre os riscos e as ações para reduzi-los aumentaram globalmente, mas medidas de adaptação têm sido insuficientes diante da magnitude do problema. Cena do desastre causado pelo excesso de chuvas em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Foto: Tânia Rego | Agência Brasil

Geralmente, entre os problemas desse sistema de comunicação estão o número de cadastrados no alerta, que pode ser baixo, e os textos das mensagens por SMS, genéricos para uma região e até mesmo para o tipo de evento previsto.

Na pesquisa do diagnóstico de capacidades, 25% dos órgãos responderam usar o SMS para comunicar os alertas. Para outros tipos de comunicação, 56% responderam usar as redes sociais (Facebook, Instagram) e 43% aplicativos de mensagens (WhatsApp, Telegram).

Para Marchezini, tanto a comunicação como o envolvimento da população podem ser os diferenciais para salvar vidas em casos de desastres. O pesquisador cita como exemplo o Japão, em 2011, quando cerca de 3 mil alunos do ensino fundamental e médio de Kamaishi, na província de Iwate, sobreviveram ao tsunami que atingiu a região. Isso foi graças à rápida evacuação após um terremoto, possibilitada pelo treinamento dos próprios professores e estudantes.

O pesquisador também acompanhou, com apoio da FAPESP, a reconstrução de São Luiz do Paraitinga (SP), destruída em janeiro de 2010 por causa de um transbordamento do rio Paraitinga. No município, os próprios moradores agiram com rapidez para responder à enchente, depois realizaram audiências públicas, resultando na criação do Centro de Reconstrução Sustentável de São Luiz do Paraitinga.

Anos depois fizeram a reposição de árvores em morros devastados, reduzindo o assoreamento do rio, e estudantes do ensino médio trabalharam em um mapeamento de riscos para prevenir os efeitos de inundações, descrito no artigo Giving voice to the voiceless: connecting graduate students with high school students by incubating DRR plans through participatory mapping (leia mais AQUI).

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Simulado de enchente realizado no distrito de Catuçaba, no munícipio de São Luiz do Paraitinga, junto com a Defesa Civil, em 2019. Foto: Governo do Estado de São Paulo

“Em São Luiz, o que ajudou a acelerar o processo de reconstrução foi justamente a participação da sociedade por meio das audiências públicas e o fato de o plano diretor definir uma zona de especial interesse social. O litoral tem agora esse desafio”, diz Marchezini.

Procurada, a assessoria de imprensa do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, ao qual a Sedec está ligada, informou que para melhorar os quadros de defesa civil foi instituído o Plano de Capacitação Continuada em Proteção e Defesa Civil. São 25 cursos on-line e gratuitos. Entre 2020 e 2023, foram emitidos cerca de 25 mil certificados.

“Importante registrar que temos trabalhado na conscientização dos gestores municipais sobre a importância da atuação sistêmica em defesa civil, assim como a importância do órgão municipal. Nessa linha, desenvolvemos o material de capacitação para os gestores e realizamos eventos, como o “Bate-Papo com Defesa Civil”, que tem entre os objetivos a aproximação com os municípios, assim como o “Banco de Boas Práticas”, que compartilha experiências exitosas, de baixos custos e replicáveis”, informou a assessoria. A Defesa Civil do Estado de São Paulo não respondeu ao pedido de informação até o fechamento desta reportagem.

O artigo Fundos Públicos Federais e Implementação da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil no Brasil está disponível AQUI.

A pesquisa Challenges for professionalism in civil defense and protection pode ser acessada AQUI.

E o Diagnóstico Municipal em Proteção e Defesa Civil pode ser consultado AQUI.

Por Luciana Constantino | Agência FAPESP